quinta-feira, 16 de junho de 2011

Deixem eu ser brasileiro!

        Sou tradutor profissional há mais de vinte e cinco anos e a experiência acumulada nesse tempo me confere uma cristalina certeza: os revisores que trabalham nas nossas editoras pertencem a uma seita secreta com a missão de boicotar ao máximo o português brasileiro, impedir que ele se consagre na língua escrita para preservar tanto quanto possível a norma-padrão obsoleta que eles julgam ser a única forma digna de receber o nome de “língua portuguesa”.

        Sempre fico irritado quando recebo os meus exemplares de tradutor e, ao reler o que escrevi, encontro uma infinidade de “correções” que representam a obsessão paranóica de expurgar do texto escrito qualquer “marca de oralidade”, qualquer característica propriamente brasileira de falar e de escrever o português. É sistemático, é premeditado (só pode ser). Todos os “num” e “numa” que uso são devidamente desmembrados em “em um” e “em uma”, como se essas contrações, presentes na língua há mais de mil anos, fossem algum tipo de vício de linguagem. Me pergunto por que não fazem o mesmo com “nesse”, “nisso” etc., ou com “no” e “na”. Por que essa perseguição estúpida ao “num”, “numa”? O mesmo acontece com o uso de “tinha” na formação do mais-que-perfeito composto: “tinha visto”, “tinha dito”, “tinha falado” são implacavelmente transformados em “havia visto” etc., embora qualquer criancinha saiba que o verbo “haver”, no português brasileiro, é uma espécie em extinção, confinada a raríssimos ecossistemas textuais…

        É claro que o sintoma mais visível e gritante desse boicote consciente ao português brasileiro é a putrefacta colocação pronominal. A próclise, isto é, o pronome antes do verbo, é veememente combatida, ainda que ela seja a única regra natural de colocação dos pronomes oblíquos na nossa língua. O combate é tão furibundo que até mesmo onde a tradição gramatical exige a próclise ela é ignorada, e os livros saem com coisas como “não conheço-te”, “já formei-me”, “porque viram-nos”. Isso para não mencionar a jurássica mesóclise, que alguns necrófilos ainda acham que é uma opção de colocação pronominal, desprezando o fato de que se trata de um fenômeno gramatical morto e enterrado na língua dos brasileiros há séculos.

        Senhoras revisoras e senhores revisores, deixem a gente escrever em português brasileiro, pelo amor de Oxum! Consultem os seus calendários: estamos no século 21! Vão estudar um pouco, saiam de sua redoma de vidro impermeável às mudanças da língua e venham aprender como se fala e se escreve o português do Brasil! Leiam alguns verbetes dos nossos melhores dicionários e aprendam que não tem nada de errado em escrever “assisti o filme”, “deixa eu ver”, que a forma “entre eu e você” não é nenhum atentado contra a língua, nem muito menos “eu custo a crer”! Esqueçam o que dizem pasquales, sacconis e squarisis, esses charlatães da gramática que não enxergam um palmo adiante do nariz! Ouçam os apelos de José de Alencar, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e tantos outros que há tanto tempo pedem, suplicam, imploram: deixem eu falar e escrever na minha língua, na língua que é a única capaz de expressar meus sentimentos, emoções e idéias! Deixem eu ser brasileiro, deixem eu escrever para ser entendido pelos meus contemporâneos!



Marcos Bagno

Um comentário:

  1. Muito boa a reflexão de Marcos Bagno. Vou mandar pros meus amigos professores, principalmente pros corretores, corregedores e corretistas da língua brasileira...hahah

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